Três poemas

Lêdo Ivo

A terra é redonda

A terra é redonda.
Por uma fímbria deste mundo imensamente curvo
a tua genitura passou, errante, sob o vento e as estrelas.
Junto aos degraus do grande mar quimérico
eram aljubeteiros, bateleiros, acenheiros, escudeiros, forasteiros,
                                                                [almotacéis, adegueiros e mesterais.
Eram xartres e besteiros, marinheiros e guerreiros, essas gentes e essas geiras,
linhagem que em teu sangue fita um berço.
E agora o mundo é redondo
o cosmo é um infinito redondo
os faróis e os espelhos são espléndidos zeros
o amor é redondo como os seios nos balcões
a terra é redonda como uma laranja.
Mesmo o oceano atônito é rotundo como um balão.
E redondos são, no vertiginoso horizonte de funil, as velas enfunadas e os navios.
Vivemos todos num mundo belamente redondo.
Redondos são os estádios e os gritos das multidões
quando, nos jogos noturnos, a branca estrela esférica rola na relva rente.
Redondos são os defuntos e ataúdes
que a morte tumultuosa estampilha de redondo.
A própria vida é uma coisa redonda
de tal modo que, quando erramos, erramos redondamente,
em nosso engano ledo e cego ficamos redondamente enganados,
e, quando caímos, caímos redondamente no chão
protocolarmente redondo no dia hipnótico.
Nossos moedas são redondas como a efígie de César.

Redonda é a demagogia, com os seus rodeios e anacolutos.
Um não bem redondo torna circular
a cara amarela e quadrada dos pobres.
O sim é uma sílaba redonda que baila
nas bocas ortodoxamente redondas,
redondas de tanto negar e conceder, mentir e dizer a verdade,
e que se arredondam mais cada ano que passa.
A chiante boca do homem, retoricamente redonda,
vale-se do suarabácti para adular os poderosos,
recorre ao assíndeto para o despejo, usa a silepse na penhora,
pratica lototes nas denúncias e o hipocorístico nas perseguições.
A babosa boca do homem cerca-se de hipérbatos para acusar o inocente
e de hipálages para justificar as matanças,
adota o ablativo absoluto para pôr na cadeia os pequenos ladrões,
não abre mão de paragoge durante os desfiles
e faz escorrer sobre o próximo o óleo espesso das hipérboles
que o mundo, sendo redondo, é naturalmente hiperbólico
com todos os seus habitantes.




A fruta em 1940


A fruta era imóvel e esquecida.
Ningem podería jamais alcançá-la.
Ela era uma forma passageira
de grande fruta em movimento.
Podíamos contemplá-la sobre a tua mesa
onde nenhuma faca poderia parti-la.
Podíamos contemplá-la no caminho das Índias,
em Porto Alegre ou em qualquer balada.

Houve alguém que dividiu a fruta
em quatro frutas iguais
que permaneceram
intactas e sempre fruta
doce, madura, acre e iluminada.




Identidades


Victor Hugo tinha certeza absoluta de que Victor Hugo era um pseudônimo de Deus,
e se considerava propietário do céu, da terra e do oceano.
Rimbaud não sabia que era Rimbaud, por isso abandonou os velhos parapeitos da Europa
e foi viver na África.
Byron sabia que era Byron
tanto assim que abandonou a Inglaterra
e comeu a própia irmã.
Walt Whitman sempre se julgou Walt Whitman.
Amava a América e os pênis erectos dos seus camaradas
como se eles foram futuros arranha-céus.
Baudelaire viu num espelho o abismo que o tragou.
Paul Claudel pensava ser o suplente de Deus
e se derramava em caudalosos versos brancos
para celebrar a beleza do universo.
Tristan Corbière, no leito de morte,
ouviu o grasnido das gaviotas na praia da sua infância
e se convenceu de ser mesmo Tristan Corbière.
Em Paris, Jules LaForgue procurou em vão um lugar onde sentar-se.
Era inverno. Todos os bancos do Jardim de Luxemburgo estavam molhados
e a branca morte lunar o espereitava no céu mais frio que a terra.
A dúvida de ser Paul Valéry
perseguiu Valéry a vida inteira
especialmente durante a manhã, quando ele procurava o eu perdido
entre os enigmáticos sonhos da noite.
A convicção de ser T.S. Eliot assim que ele acordava
daí as suas impecáveis camisas brancas e o ar professoral.
A suspeita de ser Rainer Maria Rilke
acudiu a Rainer Maria Rilke nos seus dias finais
quando, no solidão do castelo de Muzot,
estendeu a mão para colher uma rosa.
Para ser Mallarmé, Mallarmé se escondia como um fauno no bosque de uma página em branco
e escutava o chamamento das sereias
misturado aos silvos dos trens da gare Saint-Lazare.
A Paul Verlaine não interesava ser o não ser Paul Verlaine.
Ele sabia que no outono as folhas das árvores são arrastradas pelo vento.
E isto é essencial.
O resto é literatura.