de Partida ao Cais

Carla Mühlhaus

Artwork by Jayoon Choi

Numa viagem de introspecção surrealista que começa no Café Florian, em Veneza, a protagonista suspende o tempo ao acatar ordens da sua própria pele, refazendo os contornos da sua vida e do seu casamento. Embalsamada e transformada num ser híbrido entre humana e peixe, consegue enxergar de modo diferente a acqua alta de 2019, considerada uma das piores inundações da história de Veneza. Na sua Veneza pântano ela começa a lidar com o luto da mãe e sabe que, em breve, vai receber uma visita da qual não pode fugir.  



II

—Hélène Cixous

Na volta, passando pela antiga praça, a nuca eriçou e eu sabia.

EU QUERO UM PASSADO NOVO, ela disse assim que escorregou do pântano para a calçada como sereia gótica. A cauda era uma miríade de escamas coloridas do verde brilhante ao roxo escuro, aquele brilho quase cortou minha respiração de vez, era algo que contrastava com o cinza de um jeito que nem os cristais de Murano conseguem, era reflexo de céu em final alaranjado de tarde e ao mesmo tempo azul enegrecido da noite, escuridão cintilante. Ela tinha apenas um seio, do outro lado uma cicatriz, e no rosto havia uma cicatriz ainda maior perto da boca, um sorriso cortado `a tesoura, rabisco de desenho rejeitado. Era morena de olhos azuis e trazia uma flor presa na orelha, uma dália, além de uma tristeza sólida e macilenta na face. Minha cabeça estava confusa, tinha a impressão de que ela falava em inglês. Seu olhar era o de súplica, mas com a autoridade de quem já cansou de sofrer.

QUERO SER A NOVA ARIEL, ela disse, balançando a cauda na borda do pântano como quem passa uma tarde na piscina. UMA MULHER QUE PREFERE SER SEREIA.

Tirei as botas, sentei ao lado dela e molhei os pés, não adiantava mais fugir. Tive a impressão de que o lodo estava um pouco mais quente, talvez por causa da leve agitação da cauda que balançava a areia mole pra lá e pra cá. Seu rosto era pálido e parecia gelado, mas as escamas da cauda emanavam calor. Era como se as duas partes do seu corpo não se comunicassem, como se houvesse uma divisão cirúrgica na linha do tórax.

Ela imediatamente viu, no susto que gelava minha garganta, que eu havia entendido.

Era um pedido incontornável, um espirro d’água lamacenta jogada na minha cara por uma cauda decidida. Uma ordem de sereia, e ninguém discute com sereias.

Meu pavor só não era maior porque aquelas cores da cauda se refletiam nos meus olhos como as nuvens na laguna, dançando de um lado a outro feito limpador de para-brisas, aquele movimento que diz, no fundo, que tudo vai ficar bem, mesmo que não fique. VOCÊ VAI ESCREVER MINHA HISTÓRIA DE NOVO, QUERO OUTRO PASSADO, UM PASSADO DIFERENTE.

Logo agora que eu me sentia tão bem escondida, tão encrustada no café, por que eu, POR QUE, e antes que eu me desse conta, ela disse como a pele, PORQUE SIM.

Na casa dela, penduradas no corrimão da escada, estavam roupas novas de frio pra

mim, em cabides e com um plástico por cima. Pela frente exibiam golas tipo pagão, muito comportadas. Por trás eram rasgadas e tinham uma espécie de suspensório. Ela estava na sala e parecia não poder mais esperar. Eu tinha aula, não podia mais ficar, precisava ir embora. Muito calma, ela disse que sabia disso. Perguntei por que ela não estava pronta para a aula dela. Reparei que ela nem tinha tomado banho, o cabelo parecia sujo. Você acabou nem tomando banho . . . Eu sei, ela respondeu. Dei um abraço, que abraço gostoso, ela disse, nessa hora reparei algo meio duro nas costas dela, espécie de ponta quadrada na parte baixa das costas, podia ser metal ou madeira, quem sabe as bordas do caixão.

Inventaram uma mãe pra mim, ela disse. O nome dela é MOM: Motive, Opportunity and Means. São os elementos requeridos para resolver um assassinato, obviamente. Thoughtprints, a psicologia dos atos, a ciência dos detetives. Sorry falar em inglês `as vezes, mas essa língua sim é minha mãe. Well, eu sou aquela do homicídio mais famoso do século XX. Dália é uma flor plantada para ser ornamental e suas pétalas costumam ser segmentadas, cortadas ou mordidas.

Foi assim que ela começou a falar, e de dentro dos seus olhos saíam ondas de desespero afogado, eram espumas velhas de dor. Entre uma bolha e outra eu conseguia ver seus olhos mais ou menos vivos, metade aqui metade lá, íntimos da lama turva. Eles buscavam sempre as minhas mãos, eram pálpebras descrentes demais para encarar um olhar e pedir um abraço. Foi um repórter policial quem as fechou, e depois disso todos os olhos do mundo, bem abertos, estiveram olhando pra ela, mas ela não podia olhar de volta e pedir um pouco de discrição, please, porque a cena do crime ficou aberta para toda a imprensa, mesmo as fotos tendo sido tratadas com recursos que supostamente suavizam a crueldade humana. As verdadeiras só foram liberadas 40 anos depois, depois do crime estar prescrito, porque o tempo é o melhor cúmplice dos assassinatos. Mas foi assim que milhares de homens começaram a olhar para ela e, num cansaço secular, ela escolheu ficar apenas com a parte de cima do corpo, deixando a parte de baixo no terreno baldio onde foi encontrado, em Leimert Park, Los Angeles, a dez minutos de Hollywood. Não era bem essa fama que ela queria mesmo, e assim, só com a cauda, ela nunca mais precisaria se preocupar com o que enfiam entre suas pernas sem o seu consentimento. Por isso a sua cauda era tão brilhante, colorida e enérgica. Era uma aspirante a atriz `a prova de homens.

Ela não queria dar muitos nomes da história além do seu. E ela não era a BD, era a Elizabeth, a Beth. Não era a garota sumida que roías unhas, era a garota que gostava de escrever cartas. Não exatamente porque era uma romântica, mas porque seu pai abandonou a família e ela adquiriu a insistente mania de esperar por notícias. Era tão inevitável quanto roer as unhas.

Achava que casar resolveria tudo, mas o major a quem diria sim e num passe de mágica seria finalmente feliz resolveu morrer num acidente de avião na India, a despeito das 27 cartas que ela escreveu em 11 dias porque copiar contos de fadas ainda era a única coisa que sabia fazer. Desde então foi do leste ao oeste e vice-versa tantas vezes que nem se lembra.

No dia em que voltou para a cidade dos seus sonhos, encontrou seu corpo no tal terreno baldio, rodeado de repórteres. Foram eles, e não os detetives, quem fizeram as fotos do crime que atrapalhou bastante seus projetos. Não bastasse ter agora duas metades de corpo que não serviriam para nada em separado, também não tinha mais útero, retirado post morten—médicos e monstros podem mesmo ter muito em comum.

Casar e ter filhos já não lhe parecia mais uma boa ideia depois disso, por isso parou de escrever cartas, e depois também é difícil escrever debaixo d’água. Com isso muita coisa ficou por ser contada, apesar de muitos, na superfície, terem decidido escrever quem ela era, parece um hobby deles, esse de dizer como as pessoas são de acordo com o que eles pensam a seco. Falta-lhes banho, parece.

Quando os jornais e a polícia enjoaram dos 31 dias consecutivos de cobertura do seu assassinato, convidaram escritores para pensarem quem seria o assassino. Deve ter sido divertido para eles, esse brainstorming feito a partir de um cérebro torturado e morto. Um deles, escritor de suspenses, inventou que o assassino era impotente. Se tivesse se dado ao trabalho de pesquisar o histórico do assassino, saberia que ele também havia sido julgado por incesto e liberado depois de pagar uma fiança de 5 mil dólares.

No dia seguinte, um jornal concorrente também apareceu com um escritor de best seller produzido pela Warner Brothers e tudo, que decidiu que o algoz e a vítima se conheceram num bar e conversaram sobre algo erótico, o que abriu as calças do inconsciente do senhor que em pouco tempo enlouqueceria. Uma loucura muito calculada, a julgar pela maneira como planejou tudo. As loucuras, como ela viria a entender, podem ser muito convenientes.

Dia após dia ela virava uma novela, um seriado assistido por todos os norte-americanos. Sua pós-vida, na verdade, originou mesmo uma série de TV, mas ela preferia não falar sobre isso porque lhe dava dores na linha do Equador.

“É quando dorme que ela me pertence”, lembrei, estava no Peixe Solúvel, aquela novela que retrata as mulheres em troncos, desprovidas de cabeças e membros. Ver na loucura uma liberdade é só uma interpretação adolescente de Freud, megalomania narcísica do Breton. Olhei de novo pra ela, havia me distraído por alguns segundos, mas ela não notou. Estava acostumada a não ser ouvida.

Os jornais chegaram a inventar um assassino como isca para o verdadeiro aparecer, mordido pela vaidade, o que só serviu para ele matar mais algumas mulheres e deixar, nos seus corpos, recados para a polícia escritos com batom. Era um passatempo irresistível, como ele também deixava claro nos postais que enviava para os jornais. Em duas semanas, foram 13 notas para a polícia. Que não duvidem de toda a pedagogia de Jack, o estripador, outro que adorava bilhetinhos.

Mas o que eles não sabiam, ela disse como se já bastasse, era que ela tinha virado o que alguns senhores chamavam de obra de arte. Mais: ela era uma homenagem secreta entre amigos, um seleto e específico clubinho de homens.

Começou a inundar tudo na minha cabeça, a maré voltou como num tsunami. Por trás do zumbido nos ouvidos era um chiado, por trás do chiado uma onda, “O essencial não será sermos os nossos próprios senhores, e também os senhores das mulheres?”. Paris, a cidade das luzes, século XX. Breton, autoproclamado Oráculo de Delfos, buscando um conto de fadas para homens mimados, e estava escrito no meu caderno automatismo psíquico, mas eu li autoclismo, autoclismo psíquico, privada mental.

Uma das brincadeiras deles, no clubinho de meninos, era se fingirem de loucos numa espécie de loucura consciente, puro fluxo de egocentrismo, porque esses loucos podem ter tudo do jeito que eles querem, sempre. Como as crianças que amedrontam os pais com escândalos, ela disse, o que me fez pensar que ela daria uma boa baby sitter.

Alguns chamam isso de Surrealismo, falei, é um nome muito respeitado na superfície onde vivem os homens que mantém as mulheres no subsolo, “nós batemos no solo com o casco do nosso cavalo sempre que queremos exprimir a uma ou outra que muito folgaríamos em levá-la para a superfície”. Faziam uma crítica ferrenha ao dualismo, essa mania de dividir tudo em opostos, no entanto continuavam a dividir as mulheres ao meio. Se tivessem corpo não podiam ter cabeça e vice-versa, as “servas da fraqueza, servas da felicidade”. Diziam ser capazes de produzir “gases rarificados” e quando lembrei disso pensei, pela primeira vez, se não teria a ver com o autoclismo psíquico. Acompanhados de um pozinho branco, também atacavam a burguesia enquanto frequentavam os mais badalados salões de festas de Paris e brigavam para decidir quem sairia na foto oficial de cada exposição.

Sim, é isso, ela concordou, e pareceu aliviada por confirmar que eu sabia o que precisava saber naquele momento, numa dessas coincidências raras da vida. Eram todos discípulos de Sade, “o mártir sagrado da liberdade”, segundo Eluard, ou aquele que acreditava ser um filho da puta com classe. Enquanto falava, mal parava para respirar, mas pediu desculpas nessa hora por ter usado um palavrão. Ela era uma sweetie, não costumava borrar o batom com expressões de baixo calão, sorry, e continuou.

Tinha um fotógrafo, fã de Sade a ponto de fotografar o manuscrito de 120 dias de Sodoma: era muito famoso e adorava ser famoso porque podia continuar acreditando, como surrealista de carteirinha, que as mulheres existem para dar prazer aos homens. Mais, que esse prazer só é alcançado infligindo a elas humilhação, degradação e dor, como ensinou o tio Sade.

Lembrei do que havia lido sobre um de seus quadros expostos em Los Angeles, nos anos 40, intitulado Retrato Imaginário de D.A.F. de Sade. O crítico de arte H. Millier escreveu, na Art Digest, que aquele era um assunto para revistas de crime e tortura.

Era prático ser surrealista, porque assim ele podia tirar fotos de adolescentes nuas sem nenhum problema na consciência, afinal sua consciência era inconsciente e não sabia muito bem o que fazia. Pra eles era conveniente dizer que não havia separação entre realidade e sonho, assim não precisavam se responsabilizar pelos pesadelos delas em vida. Quando correu o risco de ser acusado de estupro, o fotógrafo conseguiu com um médico uma carta que dizia ser ele impotente. Talvez tenha saído daí a ideia do escritor contratado pelo jornal para criar um personagem para o assassino, o impotente.

Para aqueles senhores surrealistas, a realidade só atrapalhava. Não podia haver nada que fosse real ou vivo na frente dos seus sagrados desejos, “onde o capricho é uma estrada luminosa”, ou onde “o capricho da imaginação por si só faz as coisas reais”. Fuck them, ela disse, e corou logo em seguida. Foi a primeira vez em que vi alguma cor mais viva no seu rosto.

A coisa do capricho era uma frase de um dos manifestos surrealistas, identifiquei logo porque havia sublinhado na minha pesquisa, recuperada no Florian. De alguma forma, Beth e eu dividíamos o mesmo barco, e nenhum professor T iria tentar fazer em nós duas uma “despersonalização progressiva”, nenhum movimento iria nos introduzir na “sociedade secreta” da morte, como se ela, a morte, não fosse a coisa mais universal do mundo. Nossa morte estava unida, aguada e quase pronta. Não mais morrer em vida.

Minha escrita nunca foi automática, só traumática, mesmo, psicossomática também, ela continuou. Tanta coisa pra limpar antes de uma troca epistolar onde existam, de verdade, dois remetentes, mas isso tudo ela só aprendeu depois.

Esses senhores se diziam loucos principalmente quando tinham problemas com a polícia. Quando acusado de abuso sexual de menores de idade e interrogado por um policial, o assassino dela disse que seus atos eram nebulosos como num sonho, e que ele nunca sabia quando estava hipnotizando alguém ou sendo hipnotizado. Ser louco, para ele, era ter tudo do seu jeito, sempre, uma loucura mimada e perigosa. 

Esses senhores se diziam irremediavelmente descolados da realidade, portadores de outro mundo, como quem dirige um carro novo por imposição, com a máquina barulhenta invadindo suas garagens como eles invadem nossos corpos. Com a desculpa de que na imaginação a vigília da razão está ausente, podiam se livrar de toda e qualquer preocupação moral.

Você já sabe como se escreve a raiva?

Respondi que não, mas ela continuou mesmo assim.

Não foi o fotógrafo que me trouxe aqui, ela disse, olhando para a lama morna. Foi ele, ela disse como se ainda pudesse vê-lo, e podia. Mas não vou falar o seu nome, porque era isso o que ele queria, e isso é tudo o que ele não vai ter. Dizem que morri aos 22, mas foi muito antes, sem que ninguém publicasse no jornal ou mesmo notasse. Eu morri no dia em que ele colou a minha foto num álbum secreto de capa dura, pequeno e quadrado. Antes disso eu escrevia para a minha mãe todas as semanas e talvez por isso os repórteres tenham decidido ligar para ela e, antes de contar que eu estava morta violada torturada assassinada cortada-ao-meio, conseguirem uma entrevista exclusiva.

Fui sempre muito gentil e bem-comportada, uma darling, porque é isso o que eles dizem que querem, mas tinha medo de andar sozinha nas ruas de Los Angeles, porque eles não eram gentlemen e não se comportavam nada bem. Minha asma estava sempre buscando lugares mais quentes, mas as lufadas de vento gelado continuavam a bater na minha cara, não importava o que eu fizesse.

Faz sempre frio aqui por dentro, superfície gelada e escorregadia, ela disse. Seus lábios arroxeados tremiam e eu podia ouvir os dentes batendo, como quem bate insistentemente numa porta fechada. Eu já havia adiado demais essa pergunta, era um convite obrigatório. Você quer vir comigo para o café?


 
III

Por que Veneza, perguntei assim que chegamos. Porque é aqui que vamos encontrar com a Leonora, ela disse, e nessa hora as vozes da minha pele começaram a fazer sentido. Tínhamos um encontro marcado a cicatrizes, nós três. 

Além disso, como eu, Veneza também está acostumada a afundar, porque o mundo inteiro olha pra ela, mas ninguém a vê, ela disse. E ainda, pensei sem dizer nada, foi um corpo quem deu importância `a Veneza, o corpo de São Marcos, transladado da Alexandria. Talvez estivesse na hora e no lugar de um corpo de mulher ter a mesma importância. As sereias não têm lágrimas e sofrem muito mais do que nós. Fala mais desse clube, pedi, vou encher a banheira e fazer um café. Foi só então que me dei conta do tamanho da cauda, tão grande que ocupou o salão chinês quase todo. No entanto ela a movimentava com tanta destreza que não tirou nenhum dos móveis do lugar, nem mesmo as mesas de tampos móveis criadas para deixar passar as saias enormes feitas para impedir que as mulheres se movessem até o século XVIII.

As sereias vivem mais, até 300 anos, mas quando morrem viram espuma e ela preferia isso a ter uma alma imortal transferida por um homem (“‘Estou pronta’, declarou a Pequena Sereia, PÁLIDA COMO UMA MORTA”). Ela tinha pouco tempo e no entanto os dias foram passando sem que a gente se desse conta. Eu precisava garantir que ela ficasse bem, e não é nada fácil cuidar de uma sereia.

Foi no Arsenal que encontramos uma piscina perfeita para ela. Era do Robert Grosvenor, uma cortesia do artista para a Bienal. Feita com blocos de concreto, parecia ter sido pensada para uma sereia com uma cauda enorme que já começava a doer de tanto se espremer na minha banheira, uma banheira emprestada que eu enchia a baldes, porque o Florian não tem chuveiro. Alguém poderia se perguntar porque escolher viver assim tão sem conforto, dormindo no sofá da sala principal do café, aberto para a praça, sem cortina, usando uma cozinha minúscula sem fogão. Talvez porque, em Veneza, é você quem tem de se adaptar à cidade, e não ao contrário. Andar a pé na chuva e no sol, comprar frutas carregando um carrinho, respeitar a maré, os horários dos transportes e os becos sem saída, tudo isso traz uma humildade que a internet derrubou, porque na rede todo mundo pode tudo, inclusive, e principalmente, ser um babaca.

A Beth, no entanto, ainda não sabia o que é internet e nunca esteve mesmo acostumada com conforto, por isso a piscina lhe agradou muito. Ali ela poderia se refugiar durante o dia e, quando acabasse a Bienal, poderia até mesmo sair um pouco pelas redondezas sem que ninguém a visse. É claro que algum militar poderia olhar para ela e, sem ouvir nenhuma canção entorpecedora, se assustar, o que seria apenas mais uma reparação histórica. Dar sustos, para variar, ao invés de andar sempre assustada.

Instalada, mais `a vontade e com um pouco mais de cor no rosto, ela começou a me contar tudo. Eram três os do clubinho de meninos: o médico assassino, aquele fotógrafo famoso e um artista. O médico, ele mesmo um fotógrafo amador, não só admirava o fotógrafo famoso como, no fundo, queria mesmo era ser um artista, e a gente sabe como isso costuma acabar. Acreditava que ser surrealista era operar a realidade como lhe conviesse, com bisturi inclusive, e era profundamente influenciado por Baudelaire, Rimbaud e Sade, cânones da Maldade Direcionada Especialmente `as Mulheres, Doutores em Objetificação Sexual muito respeitados nas Academias até hoje.

Lembrei de Frida Kahlo recusando o rótulo de surrealista e chamando o Breton de filho da puta. Em Paris, chegou a se hospedar na sua casa, mas saiu para um hotel dizendo que ela era sujo e comia coisas horríveis. Depois da exposição, fez pouco caso dos elogios de Duchamp, o artista do clubinho que havia ajudado o fotógrafo a se enturmar com os dadaístas em Paris. Do que Breton, a “barata velha”, escreveu sobre ela, exotizando seu trabalho como se ele só pudesse existir no México, ela também desconsiderou cada vírgula.

Sim, ela disse, e depois eles se encontrariam de certa forma em Philadelphia, onde o fotógrafo nasceu e onde o artista pode ter mandado esconder o meu seio. Por muito tempo fui também o álbum secreto de Duchamp, desta vez em cadernos recheados de instruções para a reprodução da cena do meu crime, recomendações secretas que só deveriam ser seguidas depois da sua morte.

Por 20 anos, em NY, enquanto dizia ser apenas um enxadrista e ter largado a carreira artística, ele trabalhou nessa instalação em segredo, mas isso não parece impressionar nenhum dos críticos da obra, assim como também parece muito natural a ideia de uma instalação que expõe o corpo nu e inchado de uma mulher, aparentemente violada e deixada numa clareira, como eu fui. Até então, nenhuma obra de Duchamp havia representado tão brutalmente a realidade. A instalação, feita manualmente, chegou a cobrir o corpo com couro fino, para dar `a pele a aparência mais real possível, mais próxima da realidade que ele e o fotógrafo sabiam bem qual era e decidiram não fazer nada a respeito por décadas a fio, deixando o assassino impune. Ao contrário, decidiram me violar de novo, e de novo, para o maior número possível de voyers ao redor do mundo. Para alguns, a covardia só termina quando a vida acaba.

Ela falava tudo isso sem olhar para mim. Eram olhos cansados, cansados de serem apenas morte como fetiche. Foi o fotógrafo famoso quem fotografou Proust no seu leito de morte, a morte como arte, mas acontece que há presas e predadores, e ela cansara de ser sempre a presa. Depois de estudar toda a sua literatura erótica, foi ao Marquês de Sade que o fotógrafo dedicou, nos anos 1930, quase uma dezena de pinturas e esculturas. O que ele admirava em Sade era a capacidade de ignorar convenções e a moral, o que significava, especialmente, ignorar que as mulheres pensam por conta própria e sentem dor. Havia mesmo, entre aqueles senhores, o culto do mal contra todo o “diletantismo moralizante”, porque seu conceito radical de liberdade era em oposição à liberdade humanista, era fazer o que quisessem com os outros sem se importar com o sofrimento causado. Sempre que me dava conta disso sentia pedras de gelo atiradas na minha nuca, o que me fez ter obsessão por cachecóis.

Ela continuava sem olhar muito pra mim, mas aos poucos ia tecendo uma narrativa, uma estrutura em escamas que parecia acalmar sua cauda, que já não se mexia mais tanto pra lá e pra cá.

Mas eu não sabia de nada disso na época, ela disse. Estava ocupada demais com seus trabalhos de atriz, tentando ganhar a vida em Hollywood enquanto dividia quartos de hotel com amigas ou conhecidas. Na maioria das vezes, a única afinidade que havia entre elas era a carteira vazia. Muitas vezes ela não teve dinheiro para pagar a diária.

Quem contou tudo isso a ela, lá embaixo, quem diria, foi a filha do André Breton, Aube Elléouët. Acostumada a levar as pessoas do interior da França para verem pela primeira vez o mar, as montanhas e o êxtase da vida, achou por bem fazer excursões também ao pântano e foi assim que elas se encontraram.




All quotes from Soluble Fish taken from Manifestoes of Surrealism by André Breton, tr. Richard Seaver and Helen R. Lane (University of Michigan Press, 1972).