Não Ficção

Nara Vidal

Artwork by Vladimír Holina

Estamos em Moscou há três anos. O que não falta é festa, reunião, evento. Na maioria das vezes, eu sou a mulher do diplomata. Devo ser cordial e neutra. Não há absolutamente nada que devam saber sobre mim. As perguntas nos jantares são, ou sobre o meio ambiente, ou sobre os sacrifícios de mudar de país em país, ou a adaptação dos filhos, ou a nova língua. Nunca é necessário que eu entre em qualquer detalhe sobre quem eu seja. Os motoristas, as amigas, os empregados, os secretários também mudam a cada distribuição de posto. Tenho muita facilidade para me adaptar. Em cada país encontro uma melhor amiga que é sempre uma mãe da escola que as crianças frequentam. São amizades que duram o período da minha estadia em determinado lugar. Claro, mantemos contato virtual, mas ele, invariavelmente, vai ficando ralo. Isso é muito normal. Não há qualquer drama nessas transições. Quando me casei com o Guilherme, sabia que era para acompanhá-lo. A primeira vez que nos mudamos em missão diplomática, ele ainda era Primeiro-Secretário. Fomos para Washington. Logo que as crianças começaram a frequentar a pré-escola, fiz amizade com a Helen. Éramos muito parecidas e ficamos inseparáveis. A Helen me ajudava com as crianças quando eu precisava de um tempo só para mim. A ela, só a Helen, contei segredos que nem para o meu marido tive coragem de contar. Saímos uma noite para jantar e exagerei no vinho. Acabei contando para a Helen que, quando criança, sofri abuso e violência sexual pelo meu próprio avô. Choramos juntas, a Helen mesmo muito tocada com aquele vexame todo. Pedi que guardasse segredo porque eu morria de vergonha de ter passado por tanta humilhação. Que ela não pensasse mais naquela cruz que, afinal, era minha e que não se preocupasse porque eu tinha um acompanhamento psiquiátrico no Brasil há muitos anos e que as consultas virtuais eram muito eficazes, sempre me tiravam do buraco. Quando saímos de Washington, fomos para Lima. Crianças na escola, adaptadas, e eu conheci Lidia. Pela sua personalidade tão solar, logo a apresentei ao meu marido. As crianças brincavam muito bem entre si e nossas famílias tinham muitos interesses em comum. Com Lidia, frequentávamos sua belíssima casa de praia em Máncora nos feriados. Era comum que, debaixo do sol andino, tomássemos parte da sua coleção de sauvignon blanc e eu confidenciasse pequenas notas sobre mim a Lidia. Eu me lembro de, durante um passeio pelos jardins da casa, ter contado a ela sobre a minha belíssima casa de praia no Brasil. Um sonho de lugar que eu adoraria compartilhar com ela, não fosse a irreversível briga de família. Meus pais não falavam com o meu marido que, certa vez, numa discussão, chamou meu pai de alcoólatra. A consequência disso foi eu ser deserdada junto com os meus filhos e não poder mais pisar naquela casa. Lidia morria de pena e passou a confiar em mim uma chave extra da sua propriedade em Máncora. Íamos sempre para lá, mesmo quando Lidia não podia. Pedi que ela guardasse segredo. Aquela conversa tirava meu marido do sério. Uma vez uma amiga comentou sobre o assunto e ele acabou se excedendo e me bateu durante uma madrugada que não acabava nunca. Que se Lidia fosse minha amiga, e amiga do meu marido, que não tocasse nessa questão. Quando soube, depois de alguns anos, que nos mudaríamos de Lima para Praga, fiquei mesmo feliz. A Lidia andava me sufocando. Sempre tive vontade de morar no Leste Europeu. Parte da minha família era de lá, logo contei para a minha nova melhor amiga. Mas, com as guerras, meus avós abdicaram da nacionalidade europeia e abraçaram o Brasil como uma corda de salvação em cima de um penhasco. Eram judeus. Contei a ela o quanto sofria de ter que me lembrar dessa história. Minha avó atravessou o mar grávida da minha mãe, que nasceu no navio imundo. Uma família com muitas tragédias que se seguiram com a morte de parto da minha mãe quando eu nasci e meu pai que se suicidou alguns meses depois. Fui criada por uma tia que me rejeitava, numa pobreza profunda. Minha sobrevivência foi um milagre. Só fui ter uma família de fato depois de me casar com Guilherme, depois das crianças. Mas era uma história doída e da qual eu não me orgulhava. Confiei tanto na Adéla, que relatei para ela o alívio que foi sair de Lima depois que descobri que Guilherme estava de caso com Lidia, minha melhor amiga. Que Adéla deixasse aquilo entre nós. Era drama demais para ser revisitado, por favor. Nossa saída de Praga coincidiu com a Adéla ficar cada vez mais carente e requisitando cada vez mais minha presença para conversas, desabafos. Fui ficando completamente sem paciência. Foi uma sorte chegar em Angola.

Eu já era uma mulher de meia idade. Aliás, passada da meia idade, porque eu nunca que viveria cem anos. A Maria Isabel trabalhava no escritório do Guilherme. Fiz amizade com ela, que passou a frequentar minha casa aos sábados. Saíamos juntas para compras, chás, teatro. Foi Maria Isabel quem soube sobre o câncer que eu tive, sobre o aborto natural repetidas vezes, o problema de impotência do Guilherme que é uma forma de castigo depois de ele me trair com uma mulher de Lima e outra enquanto morávamos em Praga. Sobre o meu sequestro relâmpago, quando eu tinha quinze anos, no Rio, porque descobriram que eu vinha de uma família muito influente. Que meus pais ainda eram vivos, mas minha mãe estava com Alzheimer. Tanto drama, tanta intensidade que não era justo reviver aquilo. Que ficasse entre nós e que Guilherme jamais soubesse dessa conversa porque é uma pessoa muitíssimo reservada. Leal amiga que era, Maria Isabel se esqueceu daquilo tudo e nunca mais tocou nesses assuntos. Outros segredos e passagens da minha vida ficaram guardados com queridas amigas que eu nunca mais vou ver. Meus três casamentos, a violência doméstica que me rendeu um trauma quase impossível de superar, a minha passagem por Londres como faxineira, por Paris como garota de programa, a tara do Guilherme por sexo a três, o filho que ele teve com outra e que foi assassinado, a proposta que eu tive para publicar um livro, minhas viagens como soprano quando eu tinha vinte anos, a casa em que eu morava com meus cinco irmãos, todos órfãos, que pegou fogo, o meu pai que perdeu toda a fortuna da família com uma prostituta e se matou em seguida, a vez em que fui a mante de um ministro. Uma rica história de vida. Senti uma certa angústia quando, eventualmente, soube que a aposentadoria do Guilherme estava para sair. Voltaríamos em poucos meses para o Brasil e pronto. Com a mudança viria o fim das minhas confissões, dos segredos compartilhados com as minhas amigas. Um ponto final nas minhas verdades. No Brasil compramos um apartamento na Bahia e fomos viver de frente à praia. Passei a ser a mulher do Guilherme, a senhora que nunca sai de casa. Acho difícil fazer amigos. Minhas amigas ficaram espalhadas pelo mundo, cada uma num país. Minha família me incomoda. Não os conheço bem. Há mais de trinta anos que eu não moro aqui e fiquei cristalizada na memória deles. A minha saída do país coincidiu com a morte da minha mãe. Para a minha família foram duas ausências, duas rupturas. Ficamos, eu e a mãe, presas para sempre naquele último minuto de vida em comum. É com a mãe que eu converso no degrau da varanda, aguando as flores do jardim. É ela que me faz companhia. Sobramos e morremos para o meu pai, meus irmãos, sobrinhos. Se voltássemos, eu e a mãe, desse além, teríamos que nos apresentar, nos identificar, muito prazer. Voltar para o Brasil e não ter planos de voltar a sair é ter que esquecer cada verdade que contei sobre mim durante tanto tempo. É começar a fazer confusão, perder as pistas deixadas. Tudo já tem tanto tempo. A memória começa a embaralhar. Mergulhada nessa minha morte, levo susto com o telefone. Era o Daniel, meu marido, que vai chegar mais cedo do consultório a tempo de buscar a mamãe no aeroporto.



Click here for Victor Meadowcroft’s translation of Solange Rodríguez Pappe’s The Sea Bed from the Summer 2023 issue.