Mediterrâneo

João Luís Barreto Guimarães

Sicília

Havia oliveiras
e figos. Messina fora tomada por
barcos cartagineses
como o café da manhã toma o
espaço do ar.
Havia damascos e amêndoas. Perto
em Siracusa
(usando o próprio corpo)
Arquimedes demonstrara como a água
é incompressível.
Dávamos as mãos e os pés.
Havia limões e ciprestes.
Não sei se vinhas.





A possibilidade de amor

A
manhã fria aproxima os amantes
junto ao mar no extremo norte da ilha onde
sopra um vento frio e uma fria queda de água sai
em arco da
falésia à qual na ilha se deu o nome de
véu da noiva. Para cá de Porto Moniz (em
longas folhas de agave) cada língua deixou viva
a possibilidade de amor:
Hubert aime Christine
a Olga le gusta Mauri
só o solitário Simon e Susan a sonhadora
inscritos em folhas diversas (ainda que
do mesmo cacto) por má sorte
ou bom azar
não coincidiram no dia.
Todos estiveram aqui. Todos aqui assentiram
a possibilidade de amor –
mesmo se
a água que cai hoje não é a água de amanhã
(sequer do próximo ano) quando
estes nomes caírem e outros
em seu lugar surgirem ainda
sem mágoa. Que a paixão que aqui se escreveu
se torne amor até lá.




Pentecostés en la Taberna del Obispo

Tudo torna tudo é cíclico (um
amor que parecia perdido)
o regresso à Taberna del Obispo onde o
próprio cura torna para beber o bulício
(e una caña)
entre missas. Dentro
na Catedral a
Palavra cumpriu mais um ciclo (Cristo
já subiu aos Céus vai quase para sete dias e
o arcanjo Gabriel vai agora ver Maria
para lhe anunciar que irá ser
a Mãe de
Cristo). Fora
nas calles de Málaga erramos pela cidade e
qual o cura tornamos à Taberna del Obispo
para comungar tortillas
revueltos e
calamares. Porque onde a fé se alimenta aí
se alimenta o Homem e
nem o Espírito Santo deprecia este lugar –
assim que o cura parte sempre desce para picar
migalhas que o cura deixa (religiosamente)
para Ele.




Entre etéreo e terreno
Deus sive Natura
ESPINOZA

Na
manhã do temporal saímos a medir estragos
(repor pedras nos muros
colher gravetos do chão). A
fúria
da natureza volveu a ordem anterior
como marca de um excesso quando
no dia seguinte olhas melhor e percebes o
equívoco da
noite anterior. Da força da tempestade só sobrou
dor e silêncio (aos pés
de um pinheiro manso céu e terra derrotados:
um rato e um
pardal são a memória visível da cega
devastação) como se
um recomeço apenas fosse possível caso
entre etéreo e terreno ambos
ousassem perder. Um
deus ajusta o equilíbrio destruindo o que criou –
alguém tem que morrer cedo para que
outrem possa sobreviver.





A lenta canção de Alá

Terias de ter o dom de línguas para não te
perderes nos sons da Praça Jemaa El-Fna. Um
alquimista da Síria um curandeiro argelino
um almocreve de Tunes o
aguadeiro marroquino –
todos
te pedem a alma todos te
querem com a mão numa imensa glossolalia
que o siroco
caldeou. Ainda não viste nada querida
se ainda não viste isto: do
alto do minarete no souk de Marraquexe
o chamar do muezim faz questão de relembrar
que Maomé é o profeta (o
Deus único é Alá)
nessa canção que o estrangeiro não resiste
a imitar
(ignorante e feliz) num tom
«mais ou menos»
árabe.





Entretanto num denário romano

O
rosto de César Augusto muito mais abatido
do que a efígie de Tibério (Tibério
cruzou a Hispânia anos depois de Augusto
tem menos tempo
de estradas). Afagado pela merca
no anverso de um denário: eis como
um imperador desenha os confins de um império
e é fácil gostar do Minho (do
clima do estuário)
Augusto deixou-se ficar perdido
pelas casas de pedra vai quase para
dois mil anos. No
Museo Arqueolóxico do castro de Santa Trega
os gémeos Castor e Pólux seguem de
costas voltadas para a face
do imperador. É o reverso da medalha:
presos ao poder de Roma
de nada lhes vale serem deuses. Não podem
voltar sem ele.