de Contos ordinários de melancolia

Luciany Aparecida

Mata mar

Este branco não é espuma de mar.
Escrevo pra ele não existir mais.
Escrevo, aqui.

Tasco no branco o que me parece.
Penso na voz que me inventou e em tudo que o
Branco a fez sofrer.
Ordinario o papel.

Envergonho-me do branco.
Dispraio a voz da tristeza sem solar proteção.






Cinto de Nalvinha

Cinto passava pra pegar minha mãe.
- Que bonito cinto.
- Que carinhoso cinto.
- Que cor cinto?
Cinto ia mesmo assim.

Cinto bonito.
Cinto me olhava no olho.
A barriga rindo pro cinto.
Eu cinto de Nalvinha.

Eu amava cinto.
Cinto me amava.

A cerca crescia.
Eu andava.
Dava comida ao tempo morto no caminho.
- Come tempo, me conta um caso. O tempo comia, mais nada. Estrada grande, ladeira alta.
Bunda de mulher; um dois, um dois, várias passam aqui, um dois, um dois.

- Melancia não! Um dois, um dois, estrada
lá vai. Cinto estrada lá vai. Chora nela. Chora
dez dias e sete noites. Falta cinto. Homem
acalma nela. Caminha de vai e vem na estrada
que separa tempo dela. Estrada de rodagem não
alimenta o tempo de um dois.






Dia de Feira

            Voltei pra casa. Era sábado. Bati palmas. Dei três pancadas no portão. E avancei a história.

            - Sandro! Tu não me ouve mais? Gritei.
            - O sol tá quente, Sandro! Expressei agonia.
            - A feira tava cheia! E tu me deixa esperar assim?! Accusei.
            - De novo, Sandro!? O que tu quer? Quebrar a porta do quarto?! Sentenciei.

            - Avia, rapazinho, traz a feira pra cá. Interajo com o único.
            - Toma teu dinheiro, vai embora! Pago o espectador.

            Fecho o portão. E volto à história.
            - Sandro, disse bem perto pra ele não ter saudade do desenho feio do nome, carne fresca ou salgada?
            - Ensopado de legumes com carne com osso pra gente sentir aquele cheirinho do repolho impregnado de carne, hum? Falei com a boca chei d’água.
            - Oh Sandro, tu tá tão bonito assim. Admirei.
            - Tu nunca foi tão bonito. Elogiei.
            - Por mim, nem te lavava, fazia assim. Imaginei o trabalho.
            - O vermelho deu mais vida a tua pele. Minha observação de arte.
            - Filho! Me ajuda, vamos, pra bacia. Clamei.
            - Oh meu filho, como tua perna é bonita! Sou toda admiração.
            - Olha que bonita! Mostro.
            - É bonita, mas vai dá um trabalho. Me lastimo.

            Fiz tudo sozinha, Sandro nunca me ajudou. Limpei, esfolei, separei as partes, reservei os legumes, apreciei a cabeça de repolho crua, antecipando o cheiro e o sabor de sua textura enrugadinha e fina.
            Dia de feira é o melhor dia pra produzir carne fresca com osso. Acordar cedo. Certificar-se do descanso do animal. Ir pra feira, andar na feira, cumprimentar os conhecidos, todo mundo tem que ver, reclamar do menino, todo mundo tem que ouvir, escolher os legumes mais brilhosos. Comprar devagar, escolher bem, demorar na barraca de melancia, reclamar que queria uma inteira, mas sozinha, nunca pode carregar. Chamar um rapazinho diferente do de costume pra carregar suas compras até em casa. Chamar na porta de sua própria casa, monologar no interior.
            Despachar a principal testemunha.
            Servir no almoço de domingo ensopado de legumes com carne com osso curtida do sábado. Deixar que sua mãe, a indigesta imagem do almoço de todo domingo, chupe os ossos na mesa. Lamentar mais uma vez do filho. Apreciar o repolho no prato, alimentar-se daquele fio de carne que se adere a pele enrugada amarelo-xixi do repolho cozido com carne de osso curtida do sábado, se despedir dos indesejos da mãe.
            Respirar aliviada.
            Acomodar-se sozinha no sofá. Abraçar uma a uma as páginas soltas de papel reciclado da nova edição limitada do livro de poesias de Quintana e sentir-se satisfeita.





A dança de Ana

1

        Ana não sabia, de nunca, de ter feito, dançar.
Foi então ali, convidada, para.
      - Dança não, Ana.
       Ana queria dançar, arrumou vestido,
arrumou cabelo, arrumou cara.

 
2

       Luzes apagadas, eu sozinha na sala, na taça,
teu líquido gelado, a música, uma dança minha,
movimento meus pés.
       Pés lindos, limpos, lisos, alisados, por duas
mãos sujas de limpar. Essas mãos limpam pés de
vacas, vacas nelores, holandesas, pintas brancas
marcam a limpeza das raças das vacas.
       Não sou eu essa vaca branca, não sou eu as
mãos sujas das imundices das vacas de raça.
       Eu sou a essa outra sem definição, imito na
sala, dança alguma que não valha nada.
       - Nadar ainda é sonho, Maria?
       - Não.
       Não pensa mais em nada, só dança. Bebe
o líquido gelado. Sobe a escada que aparece na
sala te apontando caminho, vai, vai sem precisar
saber as definições das cores ou o nome das vacas
de raça pura.

 
3

       - Dança, Ana! É tua vez de dançar, deus não
te manda mais, espera mais nenhuma, a mais
definição.
       - Vai, vaca sem raça, bebe esse líquido e voa.