A Odisseia

Ana Luísa Amaral

Artwork by Olaya Barr

Era uma carta rectangular, quase branca, não fôra as letras quase desenhadas, o carimbo quase uma obra de arte. E o selo. O seu destino de carta marcara-a desde a fábrica até à loja onde estivera à venda. Entre tantas completamente brancas, havia sido ela a eleita, a deusa - a quase flecha. Quem assim a com­prara, não pensara em momentos de eleição, mas ela, sim: quando o dono da loja a tirou do monte entre envelopes e folhas brancas, quando mãos desconhecidas lhe pegaram, num começo de amigas, o seu cora­ção branco, dividido entre invólucro e matéria envolvida, revolveu-se um pouco. E assim ela foi mítico resultado do triân­gulo amoro­so entre envelope, folhas e a mão que segurava na cane­ta.

Só assim o seu destino de carta, marcado desde a fábrica onde nascera, se começou a preencher. Paixão ou amor à primeira vista, o romance foi-se fazendo à medida que a mão compunha as letras; a metade da carta (a parte que eram folhas de papel) nem se mexia do prazer que lhe davam as palavras que a mão ia inven­tando. E do toque macio da outra mão que a mantinha segura sobre a mesa.

Primeiro fora a data: um dia largo com dois números, Inverno e a convenção do ano ocidental. Então a mão deixara-a, durante um certo espaço, branca. Esse bocado em branco era jardim onde flo­res invisíveis se alteavam, dando lugar ao nome, repetido por fora da outra parte que compunha a carta. Aqui, depois do nome, depois do espaço em branco, a mão parara. Ficara-se quieta pelo pulso, dedos a embalar a caneta, o silêncio. E a carta dis­farçando-se de morta, respiração suspensa a esperar coisas.

O que depois aconteceu foi um dilúvio quase: traços a negro como gotas de chuva em vendaval, a folha devastada de tan­tas coisas em compasso de espera: pequenas confidências, entreli­nhas de amor entre nomes de livros, momentos de carinho. O que depois a acontecer, ela nem conseguira recordar mais tarde, em­purrada na caixa por dezenas de cartas. Mas nessa altura, já a flecha quase flecha a sério. Já ela a meio, a metade de si que se envolvera no romance a três.

A mão continuava, desta vez mais serena a lembrar coisas­, a ten­tar convertê-las sobre negro. E finalmente a carta a adi­vinhar o começo do primeiro fim. Fora porque a pressão da mão se amaciara, fora porque de branco em si já pouco era, ou a res­piração de quem detinha a mão só um murmúrio. De qualquer forma, ela sentiu chegar o fim da escrita. Despedidas de si e da caneta, despedidas da mão sobre o primeiro nome que nascera do branco. Que depois: curtíssimo rec­tângulo vazio, e outro nome a surgir, repetido por fora, na outra parte que compunha a carta.

Quase caiu da mesa, de cansada. Mas a mão que a sus­teve, segurou-a no ar. O que então viu ao nível do seu corpo pelo meio foram os olhos de quem governava mão, caneta e a ela.

Alguma coisa ardeu no preciso momento em que os olhos pousaram no papel. Mais que o papel de luz, olhos bri­lhando no espaço vigilante entre papel e noite. Duas vezes ou três foi reposta na mesa para o convencimento da palavra. Duas vezes ou três se sentiu mais perfeita. E após essas três ou duas vezes, foi dobrada uma vez e outra vez, e envolvida na outra metade.

Por fora, que ela já o sabia, agora que era carta in­teira, e não uma mais uma: os nomes repetidos aos de dentro, mas mais longos, outra parte do nome a escorregar. Sítios, números, traços e, no dia seguinte, o carimbo quase uma obra de arte, o selo a deslocar a simetria.

Foram dias de espera entre caixas e gente, barulho de motores e novas ruas. Espreitava, curiosa, a diferença da loja onde vivera, da fábrica onde vira, pela primeira vez, a luz. Num ruído macio, foi cair entre irmãs, mas tão diferentes: cartas de banco, um postal do estrangeiro, um anúncio de roupas de criança, epígono de si.

As mãos que lhe pegaram eram outras, e nuas entre os dedos. Admirou-se do toque tão diverso, da falta de caneta: du­rante a vida, o seu destino todo concebera-o assim: ela, caneta e mão. Mas estas mãos eram despidas, pesando-a levemente, avaliando-lhe o sabor por dentro. Foi deixada num bolso a descansar.

Desde manhã até ao fim da tarde, era o pano macio a envolvê-la toda, a quase escuridão. De vez em quando, o sentir-se acordada por aquelas mãos nuas, sopesada de novo; pressentia o desejo junto à polpa dos dedos dessas mãos, via a luz por instan­tes. E fingia-se morta pelo prazer do novo jogo, aprendido num dia. Até que ao fim da tarde, depois de transportada por espaços pressentidos meio em sonho, soube a última etapa do cami­nho. Quase flecha, por fim, ou quase deusa: aquela que chegava, anunciando.

Foram dedos rompendo-a devagar, a metade de fora pousada devagar por mão diferente, prestes a ser amiga. E outra vez o prazer ao sentir outros olhos tão diferentes. Agora, a mão despida e uma nova paixão se insinuou: vértice do romance que era mão e caneta foi esquecido e, em seu lugar, os olhos – o ter­ceiro pilar desse romance.

A leitura era branda, mais passiva que o acto de escrever. Talvez por isso eram estas mãos nuas, pensou ela: por­que não precisavam de falar. Por isso eram os olhos mais precisos, um verdadeiro fresco junto à última curva do caminho. Eram uns olhos brandos, como branda a leitura: centro em lugar de canto da paisagem.

Alguma coisa ardeu no exacto momento em que os olhos corriam no papel: como os outros, cintilando no espaço vigilante entre papel e noite a irromper. Que a tarde já no fim quando as leituras chegaram ao seu termo e ela foi posta, enfim, a descansar. Rectangular, deitada na gaveta, lembrou ainda, entre vigília e sono, fábrica e loja, locais de parto e vida, e por entre fragmentos de memória, de todo misturados, dois olhares, mãos diferentes, quase uma obra de arte o carimbo – ou o selo?

Qualquer coisa quebrando simetrias, mas não sabia o quê: mais forte era o cansaço, quase ao lado o amor, e as memórias rompendo-se no sono. Caía a noite e a luz, quando por fim adormeceu.